“É um disparate as pessoas convencerem-se de que a inteligência vem do cérebro”
Vinte e seis anos após O Erro de Descartes, António Damásio tem um novo livro, em que nega a frase do evangelho “no início foi o verbo”. Sobre a pandemia, alerta: “O grande problema da velocidade a que se pode criar uma vacina é ter a garantia de que não se transformará num problema ainda maior.”
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Sentir & Saber – A Caminho da Consciência
António Damásio
Editora Temas e Debates
292 páginas
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“Aliás, é mais fácil escrever muito do que pouco, porque o trabalho de redução é extremamente difícil”, acrescenta, rematando com a experiência de um colega que dizia:”Não tenho tempo para escrever tão curto.”
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Se lhe perguntar qual é o legado de um trabalho de décadas, este livro é a resposta?
Existem vários aspetos no meu trabalho: o científico e o de pensamento, portanto dizer que este livro é o legado seria um exagero. É, muito especificamente, uma maneira de tratar assuntos que me apaixonam – problemas científicos e filosóficos – e uma tentativa de os expor sob uma forma mais clara. Por boa sorte, enquanto fui construindo o livro também tive a oportunidade de descobrir que algumas das soluções que tenho apresentado para certos problemas são, de facto, soluções novas e sob certos aspetos – digo eu e vários dos meus colegas – muito convincentes. Então, posso dizer que é ao mesmo tempo uma tentativa de pôr a claro e de uma forma mais direta temas importantes do meu trabalho e deixar claro que existem questões em bom caminho de serem resolvidas. Muito especificamente, no que respeita à consciência e aos sentimentos.
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Aliás, com o tremendo sucesso do que hoje se chama a neurociência, a preocupação dominante tem sido o cérebro, propriamente dito. Questiono se o cérebro é capaz de resolver todos os problemas que existem em torno do que é a mente humana. Para perceber o que é a mente, necessita-se de entender o que se passa com o cérebro, mas, muito antes disso, compreender o que se passa com o corpo, vivo e inteligente. Diria que esta é a resposta completa à pergunta.
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Pode parecer paradoxal, porque quando se pensa na inteligência artificial o que vem à ideia é que são criaturas absolutamente invulneráveis, feitas de aço e de plástico em vez da nossa pobre carne humana. À primeira vista pode parecer uma asneira introduzir vulnerabilidade numa coisa que é robusta, no entanto, só a introduzindo teremos a possibilidade de fazer qualquer coisa de mais rico em matéria das reações que esse “organismo” poderá tomar.
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O que quero é mostrar, tanto quanto for possível, que as respostas que hoje estamos a dar podem ser diferentes mas o mesmo não se passa com as perguntas. Desde que temos mentes conscientes – uma mente consciente é a que tem sentimentos e se estes não existirem, provavelmente, não haveria consciência -, é importante termos a ideia de como o corpo está a funcionar e essa é a porta de entrada para as grandes perguntas humanas, aquelas que são as de sempre e desde que uma pessoa se lembra de que a vida tinha uma problemática extremamente complexa. Mas só desde que existem sistemas nervosos é que foi possível transformar essa problemática em consciente. É um quase paradoxo que, ao pensarmos no tempo da vida humana no planeta, apenas no último quarto desses quatro biliões de anos se deu a entrada dentro do sistema nervoso e que só nos últimos 200 milhões de anos é que, quando muito, há qualquer coisa que venha a parecer-se com aquilo que é o nosso sistema nervoso. A conclusão é que grande parte do tempo dos seres vivos sobre o nosso planeta tem sido vivida de uma forma inconsciente.
O que quer dizer?
Que havia vida complexa e evolução, mas ninguém sabia que existia. É espantoso pensar que isto só começou a ser conhecido no momento em que começámos a ter consciência do que estava a acontecer no nosso corpo e com a nossa vida. Depois, à medida que os sistemas nervosos evoluíram, conseguiu-se ter um conhecimento através da observação e das ciências do que é a vida em seres vivos como nós. É uma história muito complexa, mas uma vez que chegámos à idade da consciência e da razão, foi possível fazer as perguntas e as pessoas puderam olhar umas para as outras, olhar para a história delas próprias, e então fazer essas interrogações e questionar o sentido da existência.
Alerta para o facto de uma teoria que ignore o sistema nervoso para justificar a mente e a consciência estar condenada ao fracasso, mas, diz, uma teoria que dependa exclusivamente do sistema nervoso está também condenada a falhar. Enquanto cientista, como é viver num equilíbrio investigatório?
Sem dúvida que essa é uma das ideias principais deste livro – como já era no anterior,
A Estranha Ordem das Coisas -, a de que a vida começa antes do cérebro. Neste momento é muito comum que estejamos constantemente a ser bombardeados com novos factos e ideias sobre o cérebro, daí que as pessoas acabem por se convencer de que aquilo que é a sua inteligência vem do cérebro. Isso é um disparate e é completamente errado dizer que a inteligência vem do cérebro. A nossa inteligência é complementada pelo cérebro! Porque a nossa inteligência começou há biliões de anos com a própria vida e tem vindo a desenvolver-se com processos que antecedem o aparecimento dos sistemas nervosos. Em inglês, tenho no livro uma frase que é assim: “Brains are an after thought of nature”, traduzindo: “Os cérebros são o último pensamento da natureza.” O que quer dizer que a natureza pode funcionar perfeitamente sem cérebros, contudo o que os cérebros lhe trouxeram foi um melhor funcionamento. Portanto, a razão por que temos cérebros – e mente e consciência e raciocínio – é porque nos ajuda a viver melhor. Ajuda a vida e permite a vida com a grande complexidade como é a dos seres humanos. Não esquecer que, antes de existir essa grande complexidade, já havia vida, inteligência e funcionamento.
Daí que dê como título ao primeiro capítulo “No início não foi o verbo”, contrariando a abertura do Evangelho de João?
Claro, só podia ser assim. A frase clássica é bíblica e tem que ver com a maneira como os seres humanos de há alguns milhares de anos descrevem a sua própria situação. Evidentemente, eles confrontavam-se com a sua realidade e a palavra, como forma de descrever fenómenos diversos, era o modo principal. Hoje, sabemos que temos milhões de anos de evolução, que começaram e mantiveram-se com a inteligência – mas não havia nem cérebro, nem mente, nem capacidade verbal; portanto, é muito importante afirmar que no início não foi o verbo. Trata-se de uma leitura perfeitamente aceitável, mas devemos entendê-la como uma leitura parcial, que é a sua realidade.
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Choca o leitor, e vamos à página 3, quando compara o ser humano aos seres unicelulares ; que nos diferenciamos por ter uma inteligência baseada no raciocínio e na criatividade mas somos iguais no aspeto de uma competência não explícita como acontece com as bactérias. Somos assim tão iguais?
Somos iguais e não somos. Nessa característica somos, mas depois existem todas as outras que vieram juntar-se a essa e que nos dão uma capacidade extraordinária. Não podemos fazer a comparação entre o ser humano e uma bactéria, pois um tem inteligência, capacidade de criação e uma autonomia completamente diferentes, mas ao mesmo tempo devemos reconhecer que a humilde bactéria tem vida, tem de a regular e confronta-se com o problema de se alimentar, de se defender do excesso de frio ou de calor… Uma vez que há vida, existe uma complexidade e uma novidade extraordinárias e é isso que se encontra na bactéria e em nós. Não é que os seres humanos devam ficar ofendidos por serem comparados a uma bactéria, é um pouco ao contrário, pois devemos reconhecer que aquilo que a bactéria tem é um aspeto fundamental para o que nós somos e deve ser respeitada se não quisermos que dê cabo de nós. Seria bom que pudéssemos fazer isso com os vírus, o que não é neste momento de todo possível como se vê com a pandemia com que nos confrontamos.”